Conto - Roniwalter Jatobá

Ricardo Fernandez Ortega
Vontades

Desde que atinou da ideia de se largar pelo mundo, pensou que não adiantava benzedura de mãe, reza na busca da fé ou pedidos, ampliados na boca fechada, balbuciados nas novenas de janeiro. Nada acalmaria a vontade crescente cada vez mais, nem mesmo imploração que esse mundo aí fora é armadilha, pega tudo, desde a lacraia pequenina até touro mais forte, reprodutor de vacaria, bendiga se também o homem, fraco como ele só. Traição em cada canto de esquina -- essas besteiras que filho sem miolo acha e que toda mãe com razão diz.

Os viajados, chegados de pouca hora, falavam. Em volta, todo mundo escutando, Jarrê mais. Até tosse comprida em outras gentes que chegaram de outro mundo, de outras terras, ele escutava extasiado, arremedando em pensamento, com inteira vontade de se largar e voltar por igual. Ficava de beiços caídos, ouvindo em pé, na escuta, guardando tudo.

Eles diziam que tudo em São Paulo era formoso, de melhor não havia, coisa e tal: somente guardavam as tristezas, escondidas nos cantos dos pés de porteiras, que ninguém achava. Falatórios bonitos de ruas cheias de carros se multiplicavam em mil na imaginação de Jarrê.

Então, eles diziam dos prédios, grandes, dez, vinte andares, até tocando o céu, dos empregos oferecidos, a escolher, sem calos nas mãos, ganhando bom dinheiro para o gasto e fazendo pé-de-meia. E mostravam à multidão (Jarrê sobressaía especulando, olhando de perto, cheirando, como é isso?, aquilo?) o relógio de pulso, Seiko, japonês legítimo, comprado a prestação na José Paulino.

Jarrê, no perguntar só por perguntar, quem sou eu para possuir, qual é o preço?

Destamparam a radiola nova de nome difícil. Confiaram que não mais de pau-de-arara. Agora era ônibus que num pulo chegava lá, cortando asfalto de frente, na noite e no dia, como andorinha, pouca parada, livre de chuvas.

Alguns pediram licença, outros não, deu a hora da fome, meio-dia no ponto meio do sol. Por fim, saíram todos, os chegados de novo recebidos como visita em dia de festa, outro preparo.

Jarrê ficou só, só com a querência de ser gente bem. A ideia de partir acumulada no pensamento. Caminhou para a igreja, única construção sólida, já aguentou duzentos invernos, tiros nas grossas portas, fora desavenças lá dentro, até mesmo do vigário que somente vinha de mês em mês, agora vazia. Empurrou a porta pesada, se benzeu e subiu as escadas em direção ao sino pelo balaustrado, devagar. Madeiras rangentes que se balançavam com o peso dele, qual a casinha de Teodoro, perto do alto do cemitério, que qualquer vento bobo põe as folhas de ouricuri que servem de telhado a se arrepiarem.

Os morcegos se alvoroçaram com a visita fora de hora e voaram em bandos para cima, ao telhado, se grudando às telhas. Um mais afoito encostou no sino, ficou tresvariado, amoleceu, e sumiu se batendo.

Tarde de quentura, vento sem bolinação.

Jarrê deu desejo de descer e ir para casa. Desistiu. No fim da rua, ele viu, onde qualquer atiradeira de borracha mole consegue alcançar, uma mulher sair da última casa e passar pela calçada vazia de gente e desaparecer mais adiante. A saia comprida refletiu, por instantes, ao sol.

Jarrê olhou a imensidão. Nuvens papudas se indo com vento na popa, se acumulando bem próximo onde ele esteve ainda ontem de manhãzinha cortando rama verde para alimentar as cabras paridas de novo, subindo ora pedras valendo o sacrifício, ora não valendo, descendo sem aderência nas pedras soltas. Depois, voltando carregado, entrando na rua de casas de uma fileira só, ele com ares de tristeza olhando a solidão da tarde, as mãos segurando com força a braçada de capim colonião, d'angola, vargem e duas mangas de vez, temporãs.

Agora, passou os dedos na poeira do sino. Esperou, pensando, o sol se virar de lado, se livrando do meio do céu e fazer o caminho, no vagar, rumo aonde se põe. Os raios entram na janela, direto, se esparramando com jeito de sem pressa, e ensolaram os cabelos se arrebentando nos olhos dele. A luminosidade, fazendo a sombra tomar forma, desce pela calça, devagar, devagarinho, tomando todo o corpo. O jovem piscou na cegueira de dia claro, vendo a rua parada, sem vultos nas calçadas que não eram de pedras redondas como a calçada aprumada, lisa, enfileirada, da igreja. Ruas somente tomadas de gente nas procissões de setembro ou no 2 de Julho, época das argolinhas.

Parecia estar vendo: os cavalos descambando e arrancando terra poeirenta pelos cascos afiados. Uma tropa, brilhosa nas cores, repleta de cavaleiros de peitos coloridos. Cavaleiros velozes, indo certeiros, no corredor cercado de bandeirolas. Um cavaleiro, esporando o animal e fixo na sela, olha de banda, se ajeita, prepara a lança curta de madeira, se curva na sela sem bicos, na carreira desabalada. Os gritos de um lado, amarelo cor de ouro, e do outro, vermelho cor de sangue cor da vida, se confundem nos ouvidos sensíveis de Jarrê. Cavalos empinando, patas para o ar. Vivas, que batem e rebatem de casa em casa, sobem ao céu e afugentam o sol.

O sol vai embora, se pondo, e deixa Jarrê sair da igreja e divagar sem sombra para casa. Chegou medroso. Por ser tão tarde, fora de costume, entrou de mansinho com receio. Sentou na cama escutando o vento que pouco bulia lá fora. Mesmo sedento, fome não tinha, receoso pela peia, tirou os chinelos e deitou. Ninguém ainda dormia. Lá dentro, à beira do fogão de lenha, conversavam na quentura das brasas que morriam em cinzas.

Fechou os olhos. Cansado, dormiu. O sono das viagens, dos devaneios em dimensão de vontades. No segundo sono, amoitado no canto da cama, sonhou. Não com o ônibus enorme e veloz que toda noite o transportava para São Paulo, mas, sim, que voava sobre os ponteiros de um relógio Seiko alado e pontual.